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M.M. Izidoro

Os rituais nossos do dia a dia

ECOA

15/02/2020 04h00

No começo do seu discurso para a turma de formandos de 2005 da Kenyon College, o escritor David Foster Wallace conta uma parábola que é mais ou menos assim:

Dois jovens peixinhos estão nadando juntos pelo mar como quem não quer nada. Logo depois de virar em um coral, eles encontram um peixe mais velho, que pergunta para eles: "Hey, meninos! O que vocês estão achando da água hoje?". Os dois sorriem e cumprimentam o velhinho e seguem seu caminho, até que alguns momentos depois, um peixe vira para o outro e pergunta: "Mas o que diabos é água?!"

Essa parábola me marcou muito, pois eu ando tendo conversas muito parecidas com essas nos últimos anos. Conversas sobre como as vezes a gente não consegue prestar atenção ao mundo a nossa volta por literalmente estar afundado dentro dele.

Um exemplo disso é você ir a um restaurante ou a um mercado lotado depois do trabalho. Você está cansada, com fome e olha para aquelas pessoas a sua volta com um olhar impaciente. Você só quer comer, mas tem uma senhorinha que não consegue lembrar da senha do cartão logo na sua frente no caixa do mercado. No restaurante, uma criança não para de chorar no colo da mãe, enquanto o pai olha para o celular sem dar muita bola para a situação. Você se desespera. Você só quer comer e ir para casa.

Mas esse é nosso ponto de vista daquele momento. Se a gente conseguisse ter um pouco de empatia, talvez a gente percebesse que aquela senhorinha está comprando ingredientes para fazer um bolo para o seu marido de 50 anos que acabou de voltar para casa depois de alguns meses no hospital e por isso ela está emocionada e não consegue lembrar a senha do cartão. Ou que aquela família está indo comer no restaurante, pois eles tiveram um acidente doméstico e estão tendo de passar um tempo morando no hotel logo na esquina do restaurante e o pai naquele momento está no celular com o seu corretor de seguros que o está ajudando no processo com a seguradora enquanto a mãe cuida da filha que não se acostumou ainda com a cama nova .  

Isso é água.

Assim como os peixinhos a gente só consegue ter nossas experiências para nos guiar no nosso dia a dia. Então o fato de a gente estar cansado e com fome – ou até no outro espectro, apaixonado e super bem nutrido – nos faz ver o mundo através dessa lente. A lente do eu. Da MINHA fome, do MEU cansaço, dos MEUS desejos. Sem pensar no outro, na SUA condição, nos SEUS desejos, na SUA fome, no SEU cansaço.

Wallace diz no seu discurso que isso é o real significado de ter uma educação e aprender a pensar. Conhecimento se adquire, mas entender que existe o outro e que você não está nesse oceano sozinho…

Isso é água.

Muito disso vem das agruras da vida adulta. Uma ideia que Wallace divide comigo, é que não existe ateísmo na vida adulta moderna.

Todos nós adoramos a um deus. Seja ele religioso – e com o nome que você quiser dar – ou seja ele conceitual como seu trabalho, seu dinheiro ou seu conhecimento. Nós sempre estamos adorando alguma coisa e se aceitamos uma religião, temos de fazer de tudo para ir para sua ideia de paraíso. Seja esse paraíso nos céus ou uma conta bancária com muitos zeros no saldo.

Tudo que a gente faz enquanto adultos, tem um tom ritualístico. Assim como sacerdotes religiosos, usamos a mesma roupa que nossos pares para sermos reconhecidos e aceitos na nossa ordem. Seguimos regras estritas que nos falam aonde ir, o que comer, como ter uma promoção no trabalho, com quem procriar, como pessoas com o nosso tom de pele devem se portar, em que fila do supermercado você tem de ficar se tem menos de 10 itens no carrinho. Tudo é ritual. Tudo é adoração.

Essa adoração, faz com que a gente foque nosso ponto de vista para o que importa para conseguir esse nosso objetivo. E, é assim que nascem os extremismos. É assim que a gente se divide. É assim que a gente se separa. É assim que a gente vira um pro outro e se pergunta: "Mas o que diabos é água?!"

Isso é muito a tônica deste momento que estamos vivendo. Cada um focado no seu. As vezes literalmente focado no seu celular, sozinho e pouco no nosso. Cada um pensando no singular e nunca no plural. O que EU posso ganhar com isso? O que MINHA comunidade pode ganhar? O que MINHA crença pode ganhar?

Mas isso tem solução. Uma solução que eu mesmo demorei muito para entender e pôr em prática. Mas que hoje, não tem como voltar atrás, pois eu aceitei que temos de ter a percepção aberta para fazer tudo que podemos para ter uma vida boa ANTES da morte e não DEPOIS dela.

Esse é um conceito simples, mas difícil de colocar no mundo. 

A gente trabalha muito com a ideia de prazer tardio. É a ideia que depois que você conseguir aquela vaga de trabalho, tudo vai ficar bem. Que depois de você casar, tudo vai ficar bem. Que depois que uma parte inteira da população perder ou ganhar algum direito, você vai ficar bem. Sempre tem um depois e depois e depois…

Mas a verdade da vida é que não tem depois, só tem o agora. Não dá para ficar bem depois que a gente morrer, só dá para ficar bem agora que estamos vivos.

Essa percepção é a real educação que nos falta hoje. É tirar um tempo das nossas vidas corridas e tentar entender que todo mundo tem uma história e está passando por alguma coisa que é diferente da sua. Que você está seguindo regras escritas por outras pessoas que não você. Que até mesmo você pode estar escrevendo regras para outras pessoas. Que você pode sim ter escolhas e talvez a mais importante delas, é ter a escolha de que estamos nadando juntos nesse oceano. Cada um do seu jeito.

Isso é água.

Sim, temos de pensar no futuro e nos planejar para isso. Fazer uma poupança. Ter um trabalho que paga melhor ou que possamos trabalhar melhor. Saber que vamos ter o que comer amanhã. 

Mas sem extremismo. 

Temos de lembrar, que a real liberdade não vem da sua conta bancária ou da sua adoração a nenhum deus. A real liberdade vem da vontade, da atenção, da percepção que para nos ajudarmos, nós temos de ajudar e entender o outro. O outro sendo animal, vegetal ou mineral. Qualquer coisa que não sejamos nós mesmos.

Como Foster Wallace diz ao fim do seu discurso:

"É sobre o valor real de uma educação real, que não tem quase nada a ver com conhecimento, e tudo a ver com simples consciência; consciência do que é tão real e essencial, tão oculto à vista de todos os lados, o tempo todo, que precisamos nos lembrar repetidamente:

Isso é água.

Isso é água.

Isso é água."

Sobre o Autor

M.M. Izidoro é contador de histórias e criador da campanha #EuEstou, para promover a saúde mental e a prevenção do suicídio entre adolescentes no Brasil

Sobre o Blog

A cada 15 dias, vamos contar notícias boas da vida real que aconteceram com gente de verdade como eu e você